Europa / Crise

As substituições de Georges Papandreou por Lucas Papademos e de Berlusconi por Mario Monti foram na realidade dois golpes de estado de um um novo género, sem tiros, sem sangue, orquestrados pelos mercados financeiros.

O método é simples: cria-se uma grande pressão sobre as taxas de juros das dívidas dos países visados, pressão essa, que desencadeia uma enorme instabilidade política, e por fim, apresentar um tecnocrata para tomar conta dos destinos do país.

Estes golpes de estado não são perpetrados por um grupo político ou pelas forças armadas. As mudanças de chefias políticas são apresentadas como uma necessidade em consequência da engrenagem da desconfiança dos mercados sobre a capacidade de certos países em pagas as dívidas.

Por outras palavras vivemos novamente, uma ditadura, só que desta vez, este regime é mais sublime, pois consegue convencer os europeus, fazendo-os acreditar, que vivem numa democracia plena !

 

 

Uma organização que pode esvaziar os cofres dos Estados quando lhe aprouver? Vivemos nós num país democrático? Para me certificar examinei os textos oficiais, ou seja, o tratado que estabelece o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE ou, na sigla em inglês, ESM).

TREATY ESTABLISHING THE EUROPEAN STABILITYMECHANISM (ESM)
https://consilium.europa.eu/media/1216793/esm%20treaty%20en.pdf
Podem-se aí encontrar facilmente os artigos mencionados no vídeo (a partir da página 19). Quanto ao resto do tratado, não consegui encontrar nada que limitasse este poder ditatorial !

Mas como é que isso é possível no quadro dos tratados da União Europeia? Trata-se de uma extensão ilegal das competências da União! Investigando mais descobri que certas decisões foram tomadas discretamente e rapidamente a fim tornar “possível” este MEE.

Estou certo de que se políticos no nosso país quisessem criar um clube que tivesse a possibilidade de esvaziar os cofres do Estado quando quisessem e tão frequentemente quanto quisessem, eles não conseguiriam efectuar as alterações legais necessárias, nem mesmo em vinte anos! Mas a burocracia de Bruxelas conseguiu preparar os tratados a toda velocidade a fim de cometer este golpe de estado em 17 países simultaneamente!!!

 

 

Portugal deve repudiar a parte ilegítima da dívida

Afirmação de Éric Toussaint, presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, que esteve em Lisboa em julho deste ano, a convite do CES (Centro de Estudos Sociais), para explicar o que é uma auditoria à dívida. 


Éric Toussaint sabe o que é uma auditoria à dívida, ao serviço do novo governo de esquerda do Equador, Toussaint fez parte da equipa que investigou a origem e o destino da dívida pública do país, um processo que levou ao julgamento de responsáveis políticos e à decisão unilateral de não pagar parte da dívida equatoriana. 

As situações da América Latina e da Europa são diferentes, mas há lições comuns a tirar, explica Toussaint.

 

 

O que é a auditoria à dívida? Como funciona?

É um instrumento para analisar de maneira rigorosa as características da dívida pública interna e externa. Isto significa analisar as cláusulas dos contratos e a utilização dos fundos, e emitir uma opinião. Não é só analisar do ponto de vista do direito comercial, para ver se um contrato é ilegal. A auditoria tem de ser integral, isto é, tem de apurar como foi utilizado o dinheiro, qual foi o impacto ao nível dos direitos económicos e sociais, ao nível ambiental. A auditoria é um instrumento para identificar dívidas legítimas e ilegítimas.

 

O que são dívidas legítimas e ilegítimas? Como traça essa diferença?

As dívidas ilegítimas podem ser dívidas ilegais [que partam, por exemplo, de actos de corrupção]. Mas mesmo as que são legais podem ao mesmo tempo ser ilegítimas.

 

Dê-nos um exemplo.

Um exemplo muito concreto: os empréstimos do FMI, do Banco Central Europeu e dos governos europeus à Grécia, à Irlanda e agora a Portugal. São créditos outorgados sob condições que implicam a violação de direitos económicos e sociais da população do país, em contradição com convenções assinadas pelo país com instituições como a Organização Internacional do Trabalho, etc. Ou sobre os princípios de contratação colectiva que foram postos em questão por tal condicionalidade. Para mim estes créditos são dívida do tipo ilegítimo. Além disso, ocorreram num contexto de chantagem dos mercados financeiros e o país não tem alternativa a não ser aceitar as condições da troika. As duas partes do contrato têm de ter total autonomia de vontade e neste caso penso que o governo português não tem essa autonomia porque está sob uma pressão tremenda dos credores.

 

 

Mas olhar para este empréstimo não é ver o processo já na sua fase terminal? Não há toda uma dívida acumulada para trás? Como é que se audita essa dívida?

Há que determinar a partir de que ano se começa a auditoria. Eu participei na auditoria oficial da dívida do Equador e o nosso mandato era auditar a dívida entre 1976 e 2006. Trinta anos de endividamento. Há que analisar os créditos comerciais, os créditos com os organismos multilaterais, os créditos bilaterais.

 

 

Como se audita o uso dessas verbas pedidas? Já este ano é difícil saber exactamente como gastámos todo o dinheiro em 2010 - como consegue auditar o que foi pago em 1985?

Depende de quem organiza a auditoria. No caso do Equador [auditoria concluída em 2008] foi por iniciativa do novo governo depois de cinco anos de campanha a favor da auditoria por parte de movimentos sociais. Essa decisão abriu-nos as portas e os arquivos do ministério das Finanças e do banco central, mesmo com a resistência de altos funcionários do ministério e do banco central. No caso de Portugal não se fala em auditoria. A questão aqui é saber se a sociedade civil e os movimentos de cidadãos querem começar uma auditoria de cidadãos, sem apoio do governo. Há que saber se no Parlamento há uma maioria parlamentar disposta a constituir uma comissão parlamentar de auditoria. E há mais dois poderes: o executivo (o governo) e poder judicial. Podia ser o público a pedir ao poder judicial que investigue.

 

 

É essa a principal novidade, o facto de esta ser uma auditoria pedida pelas pessoas?

O novo no tema da auditoria é isto: até há alguns anos a auditoria era um instrumento apenas nas mãos do Tribunal de Contas e de empresas privadas de auditoria. Essas famosas agências de notação de risco têm de fazer auditoria. Conhecemos firmas internacionais como a KPMG, a Delloitte, a Price Waterhouse Coopers, etc. O novo é que agora os movimentos sociais exigem uma auditoria. E essa iniciativa começou antes dessas explosões recentes em Espanha e na Grécia, com os indignados. Esse poderoso movimento - que é muito fraco em Portugal, mas muito forte em Espanha e na Grécia - está ligado a essa vontade de uma parte da sociedade civil, que se sente mal representada, querer controlo e capacidade de influir sobre a vida política.

 

Não lhe parece que estamos muito longe disso em Portugal?

Pode ser. Mas ao mesmo tempo estamos a viver uma aceleração da história europeia devido à crise. E coisas que eram inimagináveis num momento podem transformar-se até em obrigatórias. Vim aqui convidado por organismos portugueses que querem aprender com outras experiências e saber se são executáveis em Portugal.

 

Por que é que os cidadãos não se preocuparam nos últimos anos com isso e só agora surge esta preocupação?

A situação muda quando há uma crise. Há cinco anos os governos europeus diziam que tudo andava perfeitamente. Até falavam de margem para aumentar gastos. A cidadania, influenciada por esse discurso oficial, pensava que tudo estava sob controlo. Tudo começou a mudar com a crise que explodiu nos EUA em 2007 e o contágio à Europa em 2008. Há uma mudança total de panorama e o público agora dá-se conta que o mundo está dirigido por poderes que não são eficientes, que não são controlados, que estão sob a pressão de forças como os chamados "mercados financeiros", que aparecem como um ente misterioso.

 

Mas o problema não está precisamente no facto desses países hoje afectados se terem colocado nessa posição acumulando enorme dívida? Culpar os credores não o mais fácil? Não há uma responsabilidade partilhada? Das suas palavras sou levado a concluir que só os credores são os maus da fita.

De acordo, há uma responsabilidade partilhada e por isso eu digo que se há evidência de uma política de endividamento exagerado e ilícito há que acusar judicialmente os responsáveis. No caso do Equador foram acusados antigos ministros das Finanças. Há um antigo ministro, que foi sentenciado com 5 anos de cadeia e está em fuga nos EUA, que não o querem extraditar ao Equador.

 

O que tinha feito esse ministro?

Assinou contratos - juntamente com outros altos funcionários que também foram acusados - prejudicando os interesses da nação e desrespeitando a lei do Equador. Não é um juízo político a um governo anterior de outra linha política. É uma violação da lei, ligada a enriquecimento pessoal. Quando se negoceiam empréstimos os credores podem propor subornos ou o ministro pode sugerir uma comissão.

 

Seria possível em Portugal, no domínio da teoria, chegar à conclusão que ministros do passado pudessem ser acusados de crime público e julgado?

Para mim é imaginável. Não vou afirmar que é provável. Claro que a auditoria não chega a uma sentença. A auditoria dá os dados e uma interpretação. O poder judicial, executivo e legislativo é que têm de tomar decisões.

 

Imaginando que Portugal faz uma auditoria do tipo que defende. O que faríamos depois com os resultados?

Repudiar de maneira soberana a parte ilegítima da dívida. Tomar um acto soberano que claro que põe em causa as regras actuais na zona euro, mas que não implica sair da União Europeia. Implica tomar medidas unilaterais justificadas, compreensíveis pela opinião pública, para dar outra saída para a crise. Um tema fundamental da minha intervenção é a possibilidade de um acto soberano unilateral baseado em argumentos com fundamentos jurídicos internacionais e justificados com a busca da justiça social. Não é um acto unilateral para prejudicar a comunidade internacional, nem um acto que não toma em conta o direito internacional. Por isso fazemos um trabalho com a CADTM (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo) para definir argumentos jurídicos para actos soberanos de repúdio de dívida ilegítima.

 

 

Os Agradecimentos ao CADTM, pela divulgação do conteúdo aqui expresso
https://www.cadtm.org/Eric-Toussaint-Portugal-deve

Tópico: Europa-Crise

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